E O CRISTO DE PEDRA RESPLANDECEU

“E, havendo lançado fora o homem, pôs querubins ao oriente do jardim do Éden...” Gênesis 3.24.

E o homem, expulso do Éden, da região do sossego, do frescor das fontes, da suavidade dos rios, das sombras aprazíveis, das árvores frutíferas, dos ventos leves e dos vales e campinas vestidos da glória do Senhor, desceu rios abaixo, pobre e seminu, levando ao seu lado a companheira de sua antiga bem-aventurança e agora do seu infortúnio; para construir, no alvorecer do seu conhecimento do bem e do mal; de barro, de solidão, de madeira, de desespero, de ferro, de concreto e de granito, as suas cidades.
E a civilização surgiu, e o homem cresceu no seu mundo. Cresceu em conhecimentos, em riquezas materiais, em encurtamento de distâncias, em todos os ramos da ciência. Mas cresceu sobretudo em amontoar pecados diante do Senhor.
E séculos sucederam a séculos. E entre montanhas ciclópicas e abruptamente erguidas a sudeste do Brasil, o homem construiu essa maravilha de cidade que é o Rio de Janeiro.
A noite, disforme em seus mistérios, envolvia essa cidade, quando um anjo do Senhor – pisemos agora o terreno das suposições – após concluir uma de suas tarefas, e durante sua viagem de retorno às rotas celestiais – pousou no Corcovado, sobre a cabeça do Cristo de pedra, e pôs-se a contemplar a enorme metrópole.
O que observaria um ser celeste, para além desses ares doentios, numa cidade como esta, tão adiantada em cultura e pecados, tão multiformemente vestida de esplendores e misérias? – Um vasto templo quase totalmente às escuras, pontilhado de pequenas gotas de luz. Vivos habitando entre mortos. Edifícios revestidos de poluição e altura, inflexíveis, violentando as paisagens. Homens e mulheres em seus palácios, soberbos, céticos (Sofonias 1.12), irreverentes, a entesourarem imoralidades, violência e destruição (Amós 3.10).
E, habitantes comuns, hóspedes recebidos em todas as classes sociais, cultuados em abominações solenes – espíritos maléficos, asas negras ferindo a noite e impregnando-a de pestilência e negridão – demônios, demônios, demônios! “Como caíste do céu, ó estrela da manhã, filha da alva! Como foste lançada por terra, tu que debilitavas as nações!” (Isaías 14.12).
Tu encontraste entre teus adoradores lugares aprazíveis à tua visitação, tu, que eras querubim protetor, e vivias entre as “pedras afogueadas” (Ezequiel 28.16), e agora reinas sobre os escombros das almas enganadas e corrompidas por ti.
O anjo, de pé, imóvel, fixado no crânio da estátua, lançava sobre a cidade o seu olhar superior e contemplativo, atento aos mistérios da noite. O Cristo Redentor, braços abertos, rosto esculpido em pedra, talvez brilhasse desapercebidamente naquela madrugada, transfigurado pela presença do visitante dos céus.
A estátua parecia, naquele seu gesto horizontal e largo, querer abraçar as avenidas, os edifícios, os lares, os corações; ou talvez umedecer as mãos na longínqua baía, a bela e poluída Baía de Guanabara; ou talvez ainda, num gesto de gigante, descer da montanha de pedra e banhar-se no mar, o colossal mar, sujo ao longo e ao largo. Mas ei-la na mesma altura, petreamente fixada, tendo em cima de si a presença divina e o céu, e ao redor, um turbilhão de vidas e de corações.
E o anjo, solitário e triste na contemplação do mau, alongou seu olhar por entre fábricas, residências, trens, ônibus, carros, menores abandonados dormindo sob marquises, viadutos, traficantes, corações angustiados e aflitos, prostitutas, edifícios, favelas, aviões, assaltos e mortes, e divisou, unido e espalhado por toda a cidade, um povo separado dos demais, que busca ao Senhor em adoração e súplica, lançando para dentro da noite e ungindo-a, as notas harmoniosas de suas vidas consagradas.
Rejubilou-se a ser celeste em face do bem, e estendo as mãos no ar gelado da noite, enviou aos corações daqueles que servem fielmente ao Senhor e aos que sofrem os rigores das trevas, bênçãos de esperança, consolação e paz.
Já uma vez Cristo subiu ao Calvário e estendeu os braços sobre o mundo, abrindo assim o caminho para a redenção de todos os povos. Não aquele Cristo imóvel, aquele Cristo mudo, aquele Cristo frio, erguido nas alturas do Corcovado, a testemunhar indiferentemente a nudez, a morte e o colapso espiritual da cidade do Rio de Janeiro. Mas o Cristo do Calvário, o Cristo da cruz, o Cristo de carne, amor e sangue, o Cristo que recebeu sobre o seu corpo o peso esmagador de todos os nossos pecados e os crucificou em si.
O Cristo sepultado em túmulo, ressurgido ao terceiro dia, vestes alvas, rosto resplandecente, que subiu ao Pai para ser nosso Advogado (1João 2.1), nosso Mediador (1Timóteo 2.5), aquele que é e sempre Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade e Príncipe da Paz (Isaías 9.6).
O habitante do Céu, após contemplar a cidade – a paz que desce dos montes eternos, o ódio demoníaco e seu olhar injetado de sangue, os cânticos, o fogo e as colunas de incenso das adorações – pôs-se a contemplar o sol, que no seu difícil caminho preparava-se para pousar sobre o grande Rio, em raios abrandados pelo ar poluído, beijos alaranjados e cálidos.
Subtraindo-se à luz da manhã, o anjo alçou as asas ao azul e adentrou o Firmamento.
Jefferson Magno Costa

ORAÇÃO A HIROXIMA
Clélia Inácio Mendes
a Kenji Takenchi, um menino que a pediu a 6 de agosto de 1945

1- Se costumais, homens

    da terra,    
dar asas a aves mortas,
se ouvis com prazer
seus fúnebres trinados,
se correis pelos campos
    de sangue
com tochas acesas,
erguei uma “torre da
    memória"
e esmagai sob
    ela
vossos orgulhos.

2- Eu vejo, ó Hiroxima,

tuas crianças que
    choram,
teus olhos vazios
prostrados no silêncio
e oro por ti.

3- Eu sinto, ó Hiroxima,

    tua carne dilacerada
         teu corpo desnudo
    de sentido
e oro por ti.


4- Eu amparo, ó Hiroxima,
teus braços caídos.
Neles deponho
    as lágrimas
que em ti se
    cruzaram
... e oro por ti.

5- Eu hoje oro

Kenji-Shan
pelo fumo que
    se eleva da
    cripta
de tua mão,
por Toshin (teu
    irmão) que te disse um
    eterno adeus.
Eu deponho nos
    seus túmulos
as cinzas da
    minha alma
e como epitáfio
as asas brancas da melodia que
    esperaste ouvir
naquela manhã
    escaldante
do mês de agosto
dum ano que jamais
findará em mim.

     Em Portugal há atualmente excelentes poetas evangélicos. Nada de excepcional existe nisto, em se tratando de um país que reúne um dos mais ricos elencos de poetas antigos e modernos, entre todos os que estão hoje em atuação na moderna literatura dos países europeus.
     Haja vista o fato de a genial romancista belga de língua francesa Marquerite Yourcenar, a primeria mulher a entrar para a Academia Francesa de Letras, e autora, entre outros títulos, do sublime livro Memórias de Adriano, ter-se esforçado para aprender o português só para ler os poetas da modernidade portuguesa, conforme ela mesma declarou.
     Portugal deu ao mundo um Camões e um Fernando Pessoa, além de outros gênios na poesia e em vários outros gêneros literários. Entre os atuais poetas evangélicos, a poetisa portuguesa Clélia Inácio Mendes ocupa uma das primeiras posições.
     Ao publicar, em 1985, sua Oração a Hiroxima, Clélia nos legou um dos mais belos poemas já produzidos por uma poetisa evangélica de expressão portuguesa. Eis o que a levou a escrever o poema:
     “Escrevi essa oração-poema ao ler uma obra intitulada Testemunhos de Jovens e Crianças de Hiroxima, uma coletânea de declarações feitas em escolas e colégios do Japão. Reparei com os olhos e a mente na frase de um menino (Kenji Takenchi), que disse: ‘Gostaria que naquela manhã alguém tivesse feito uma oração para Hiroxima’. Isso na realidade me tocou, e quis fosse eu quem orasse pela cidade-mártir”.
     Quem tem o dom da poesia e costuma exercitá-lo sabe que não há hora marcada para o aparecimento do poema. A inspiração pode surgir a qualquer momento, no decorrer ou no final de uma leitura (como no caso de Clélia), durante um passeio, na contemplação de um amanhecer ou de um anoitecer, durante uma conversa, ou ao ouvirmos o simples rumor da passagem do vento pela folhagem das árvores. (Sobre a passagem do vento, o genial Fernando Pessoa escreveu, dentro de um dos seus poemas assinados pelo heterônimo Alberto Caeiro, estes versos belíssimos:
..........................................................
Outras vezes ouço passar o vento,
e acho que só para ouvir passar o vento
vale a pena ter nascido.
..........................................................
     Em sua Oração a Hiroxima, Clélia soube tirar proveito das técnicas modernas de tessitura poética. Ela sabe que o poema pode crescer em riqueza expressional se for construído valorizando-se até os espaços em branco, o que o torna múltiplo de sentidos nas entrelinhas. Por exemplo: na primeira estrofe, que começa com o verso:
     Se costumais, homens, e termina em vossos orgulhos, há versos constituídos de um só vocábulo ou de expressões isoladas: da terra, de sangue, memória, e ela. Numa análise literária simples, despretensiosa, vejamos quais foram os efeitos produzidos por essa técnica.
     Clélia poderia ter iniciado o seu poema escrevendo: Se costumais, homens da terra, mas não o fez. Ela valorizou a expressão “homens da terra” dividindo-a e isolando o termo “da terra”, que forma o verso seguinte. Em se tratando de uma oração, temos de considerar o posicionamento diametralmente oposto entre os planos humano e o divino, entre aquele que suplica e Aquele que ouve, entre os homens e Deus.
     Os homens que costumam dar asas a aves mortas, e ouvir com prazer seus fúnebres trinados, são homens da terra. Eis a importância do verso da terra ter sido deslocado para baixo e ficado isolado. A mesma técnica foi empregada com relação a campos de sangue e torre da memória. O último verso da primeira estrofe (vossos orgulhos) surge “esmagado” sob a “torre da memória dos homens”.
     A colocação e repetição do verso e oro por ti, no final da 2ª., 3ª. e 4ª. estrofes foi outro importante recurso utilizado por Clélia. Porém, o ponto alto do poema está na 5ª. estrofe. Para o leitor habituado a ler poesia, é fácil visualizar nos versos pelo fumo que/ se eleva/da cripta/ de tua mão/, a própria mão de Kenji-Shan estendida e aberta sobre o chão, calcinada, fumegante. Isto nos faz lembrar um poema do gigantesco poeta chileno Pablo Neruda, sua Ode ao Átomo. Diz ele, descrevendo os efeitos da bomba nuclear lançada sobre Hiroxima:


Despertamos.
A aurora se havia consumido.
Todos os pássaros caíram calcinados.
(...) O ar incendiado se ergueu,
e a morte avançou em ondas paralelas
alcançando a mãe adormecida
com o seu filhinho,
o pescador do rio
e os peixes,
a padaria
e os pães,
o engenheiro
e seus edifícios.
(...) Os homens
viram-se de súbito leprosos,
pegavam
na mão de seus filhos
e a pequena mão
se desprendia em suas mãos (...)


     Todo poema tem seu ritmo, sua velocidade. Clélia Inácio Mendes termina seu poema em um crescendo de emoção, fazendo uso de um ritmo angustiado, veloz, suplicante. Oração a Hiroxima é um dos mais belos e tocantes poemas produzidos por um cristão-evangélico em língua portuguesa.
Jefferson Magno Costa

misericórdia e a verdade se encontraram; a justiça e a paz se beijaram. Salmos 85:10